Samba sem conservantes nem aditivos. Curtido em madeira nobre, temperado com o perfume sublime do couro. Ao sorvermos este Samba de gole em gole, incensamos nosso espírito que vagueia rumo à felicidade suprema. Bebam, e sejam eternos.



sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A COZINHA E O ALAMBIQUE

A COZINHA DE MÃE ROSA
Receita Literária

Por Lívia Santana e Conrad Rose.

Mãe Rosa acordou ainda mais cedo que de costume naquele domingo, afinal a filha ligara na noite anterior anunciando que chegaria pro almoço. Abriu as janelas e contemplou sorrindo o céu em muda e singela prece em agradecimento – a saudade andava apertada, há dias esperava que eles viessem. Alegre, tocou pra cozinha, colocando – de imediato – a água a esquentar na chaleira enquanto catava cuidadosamente o feijão preto. Tendo subido a fervura, regozijou-se com o aroma de café recém-passado e serviu-se de uma xícara, estalando a língua – o melhor jeito de começar o dia.
Catado o feijão, colocou-o no fogo em panela de pressão e foi ao quintal escolher ervas e hortaliças frescas. Trouxe manjericão roxo, alecrim, cheiro verde, couve-manteiga e pimenta bode – pra “dar um gosto”. O som de palmas no portão a deixou intrigada:
– Quem seria assim tão cedo?
Foi abrir, enxugando as mãos no avental e deu de cara com o rosto redondo e rubicundo de Seu Onofre, que pelo jeito madrugara e vinha trazer-lhe a encomenda da véspera – dois quilos de belas costeletas suínas.
De fato era muito cedo até mesmo pra abrir o açougue, mas por um sorriso de Mãe Rosa Seu Onofre se desdobrava, movia mundos e fundos. Eram vizinhos e amigos há muitos anos e, sobrevindo a viuvez dela, arvorou-se guardião dedicado e incansável. Ninguém ignorava o carinho e a esperança nutridos pelo bom homem em relação à enérgica matrona, sequer ela mesma, embora não encorajasse nenhuma liberdade e reagisse aos mimos com placidez inexpugnável.
Agradeceu a presteza e convidou-o a voltar no fim da tarde prum café com bolo, o que foi aceito com alegria. Levou em seguida as costeletas pra cozinha, lavou-as e colocou-as numa tigela, onde espremeu quatro suculentos limões, picou seis dentes de alho, cebola, pimenta verde, alecrim e manjericão frescos e um punhado de sal – cozinheira experiente que era não lidava com receitas, sabia medir a quantidade certa pelo olho, quase como um sentido extra.
O silvo da panela de pressão enchia o ar e logo o feijão estaria no ponto. Mãe Rosa foi novamente ao quintal, desta vez a fim de pegar lenha pro fogão – seu xodó. Por mais que a filha risse e argumentasse que o fogão a gás novinho com seis bocas que lhe dera de presente era suficiente até mesmo pros almoços caprichados que a mãe gostava de fazer, ela teimava. Insistia que o fogão a lenha dava um sabor todo especial à comida e fazia raras concessões ao fogão a gás, que dizia não conter um décimo da graça do outro.
Pra Mãe Rosa cozinhar era um gosto muito mais complexo do que um observador casual poderia perceber. Cada textura, paladar e cheiro tinham o condão de lembrá-la de pessoas, de passagens da vida e até da própria infância. Traziam-lhe de volta os filhos pequenos rindo em seus folguedos infantis ali mesmo naquela cozinha, o falecido marido beijando-lhe carinhosamente a face antes de sair pro trabalho, o irmão roubando balas de coco antes da hora no aniversário de dez anos. Entre os temperos e legumes, revia a mãe cozinhando compenetrada envolta na saia de gorgorão amarelo de que gostava tanto, rememorava vozes, frases soltas, melodias, sensações, sentimentos. Quando cozinhava nunca estava sozinha, pois todos os seus vinham fazer-lhe companhia.
Ateou o fogo à lenha e consultou o relógio a fim de saber se o horário já permitia um disco na vitrola – outra mania de Mãe Rosa, que não se rendia aos tais discos compactos, permanecendo fiel ao LP. Escolheu um dentre centenas: Orlando Silva, e seguiu cantarolando de volta à cozinha. Retirou a panela de pressão do fogo, pois soube pelo cheiro que bastava de cozimento. Socou meia cebola e três dentes de alho no pilão de madeira e, com duas folhas de louro e sal a gosto temperou o feijão. Da parede sacou toucinho e fritou-o em tiras na própria banha, fazendo inveja às redondezas – que anteviam as visitas de Mãe Rosa e ansiavam pelas quermesses.
Cozinhou arroz branco soltinho como a filha preferia, temperando com sal, alho passado pelo espremedor e um quarto de cebola ralada. Lavou e descascou batatas, picou tomates, abóbora e cheiro verde. Degustou mais um gole de café preto enquanto cantarolava seresta. Misturou dois copos de fubá a dois de açúcar, dois de leite, três quartos do mesmo de óleo de soja e uma pitada de sal. Levou ao fogo, cozinhando até formar um mingau e largou pra esfriar.
Quando a filha chamou ao telefone – como sempre fazia – a perguntar-lhe se necessitava algo, embora crescesse sabendo do esmero que Mãe Rosa tinha com sua cozinha, esta já dispusera as costeletas num tabuleiro grande tampado com papel alumínio pra abafar e levara a assar no forno a lenha. Em seguida, picou a couve bem fininha feito cabelo de anjo, refogou a abóbora em pedaços, escorreu e reservou o caldo do feijão pra virá-lo na farinha branca logo depois. Antes, porém, mergulhou as batatas salgadas e cortadas em tiras no óleo já quente, afinal viriam os netos.
Que chegaram primeiro, berrando e voando-lhe ao pescoço, munidos de um punhado de novidades. Mãe Rosa parou o mundo para receber os seus com palavras doces, afagos únicos e emoção sem par.
Das parreiras do seu Onofre, a título de presente, tinham vindo o tinto seco e o suco – do garrafão para a jarra e então para a mesa. Colocando a conversa em dia, Mãe Rosa misturou quatro gemas e uma pitada generosa de fermento químico em pó ao mingau já frio. Bateu as claras em neve e juntou à mistura sem bater, levando ao forno – do fogão a gás, pois o de lenha ainda demoraria a desocupar – durante uns trinta minutos, para depois polvilhar canela e açúcar de confeiteiro.
A filha compunha a mesa à medida que Mãe Rosa servia. Virado de feijão com torresmo, couve e abóbora refogadas, arroz branco, salada de tomates, batatas fritas e costeletas de porco. Tudo acompanhado por pimenta em conserva caseira, azeite de oliva, água potável e suco de uva para crianças e adultos. Na vitrola Villa-Lobos embalava a festiva refeição, com Trenzinho Caipira.
Enquanto o bolo cheirava e o caldo de feijão aguardava para esquentá-los de noite, Mãe Rosa observava satisfeita e orgulhosa a família se regalar. A seus olhos estavam todos lá de novo, falantes e sorridentes, inclusive os que já se tinham ido, tornando a reunião ainda mais especial.

Cozinheiros e Mestres cachaceiros
Lívia Santana -
livia.santana@gmail.com
Conrad Rose - conradrose@hotmail.com

E aqui vai mais uma receita destes Mestres Cachaceiros, agora em forma sonora.
É uma receita de Muqueca de Siri



Um comentário:

Ana Lúcia Rabello disse...

Puro sentimento! Parabéns!
Bjaum e FELIZ ANIVERSÁRIO, Conrad!